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Suposições não embasam acusação de subfaturamento

Por Raul Haidar

O Secretario da Receita Federal anunciou recentemente que será criado um órgão destinado a combater o subfaturamento nas importações. Tal combate teria como alvo principal a importação de mercadorias vindas da China. Declaração atribuida ao secretário menciona o uso de preços menores do que os reais naquelas operações, com o propósito de reduzir os impostos incidentes no Brasil, especialmente o imposto de importação, o IPI e o ICMS.

O país importa livremente há mais de vinte anos e a informação traz consigo a falsa idéia de que não haja controle eficaz nessa atividade sob o ponto de vista tributário ou, pior ainda, o registro de que servidores públicos tenham sido negligentes no seu dever de fiscalizar.

A fiscalização como regra tem sido eficaz. A Receita Federal do Brasil é uma das mais eficientes do mundo e seus auditores são selecionados de forma rigorosa. Prova disso é o crescimento da arrecadação ao longo dos anos, mesmo nas épocas em que a economia estava quase estagnada. O país parava, mas a arrecadação continuava crescendo. Como é pouco provável que os contribuintes ficassem mais patriotas quando ganhavam menos , a explicação está no crescimento da carga tributária e no funcionamento dos controles fiscais.

Assim, soa ridícula ou pelo menos curiosa a afirmação de que existiria na RFB um setor de inteligência , uma vez que os fatos atestam que não há nessa área do serviço público ninguém que possa ser considerado intelectualmente prejudicado ou, como se diria vulgarmente, não há nenhum burro que tenha sido aprovado nesses concursos. Assim, a palavra inteligencia foi usada no sentido de órgão de espionagem, quase sempre uma fábrica de provas ilícitas.

Tais considerações colocam em discussão a possibilidade de que, mais uma vez, o Fisco possa lavrar autos de infração de grandes proporções, caso não leve em conta certas regras básicas que norteiam a atividade tributária.

Pode ser que para fortalecer reinvidicações salariais de funcionários, justificar aumento do numero de servidores ou desviar a atenção do povo de outras questões, criem-se ações fiscalizatórias de grande repercussão na mídia e nenhum resultado prático na arrecadação.

Muitas empresas importadoras já foram acusadas de subfaturamento. Uma delas sofreu auto de infração cobrando mais de trezentos milhões de dólares a títulos de impostos e multas. O caso teve repercussão na mídia , mas o contribuinte conseguiu provar a regularidade de seu procedimento já na esfera administrativa. O próprio fisco reconheceu que estava errado, que não havia provas do subfaturamento.

No caso mencionado as mercadorias eram veículos, cujo preço de mercado pode ser conhecido com muita facilidade no mundo inteiro. Mas avaliar ou arbitrar valor de mercado para certas mercadorias como matérias primas, tecidos, roupas, brinquedos, calçados, bijuterias, peças, etc. é quase impossível. Nessas mercadorias há valores agregados de difícil quantificação, relacionados com as respectivas marcas ou “grifes”, excesso momentâneo de oferta no mercado, uso de estoques de mercadorias de modelos antigos, fora de linha, dificuldades financeiras do exportador, instabilidade política no país de origem, etc.

Tudo isso interfere no preço da mercadoria no mercado internacional. Por isso é que uma acusação de subfaturamento só se sustenta com base em prova evidente, clara, insofismável, ou seja, com a prova documental de que houve um pagamento por fora , um conluio entre importador e exportador. Sem uma prova robusta, o que existe é fantasia, presunção, hipótese, ou seja, nada que valha como prova.

Um automóvel Mercedes é um automóvel Mercedes, aqui ou em qualquer lugar. Mas certas mercadorias tem preços diferenciados não só em função da marca ou “grife” que trazem de fábrica, mas também do lugar onde são vendidos no varejo.

Eu mesmo comprei um relógio certa vez, com nota fiscal e garantia numa loja do centro da cidade, pela metade do preço que me pediram num shopping. A loja da cidade não subfaturou, mas apenas deixou de cobrar os custos que não tem por ser uma loja simples, administrada pelo próprio dono e seus familiares, localizada num prédio modesto.

O subfaturamento, seja na importação ou nas operações de mercado interno, passa, necessariamente, por duas etapas: primeira, o conluio que deve existir entre o adquirente e o fornecedor; segunda, a prova de que aquele tenha pago a este uma diferença entre o valor real da operação e o valor “subfaturado”.

Já observamos casos em que não havia qualquer prova razoável seja do conluio, seja do pagamento da diferença. E, como é curial, cabe ao Fisco fazer a prova dos fatos que alega, não podendo a autuação basear-se em meros indícios ou presunções. Nesse sentido, há inúmeras decisões tanto de tribunais administrativos quanto judiciais, podendo ser citadas as seguintes:

“Indício ou presunção não podem por si só caracterizar o crédito tributário.”

(2º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, acórdão 51.841, in “Revista Fiscal” de 1970 , decisão nº 69).

“Processo Fiscal – Não pode ser instaurado com base em mera presunção. Segurança concedida.” (Tribunal Federal de Recursos, 2ª Turma, Agravo em Mandado de Segurança nº 65.941 in “Resenha Tributária” nº 8)

Invariavelmente, as autuações relacionadas com “sub faturamento” são precedidas de diversas diligências, realizadas sem que delas o contribuinte autuado tenha sido previamente notificado. Nesses casos, as provas assim obtidas podem ser questionadas, pois a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LV, ordena que:

“LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

O chamado “princípio do contraditório e ampla defesa”, consubstanciado no dispositivo constitucional acima transcrito, não se compadece com qualquer mecanismo de procedimentos em que atos processuais se realizem sem a presença do acusado e sem que se lhe permita contraditar testemunhas ou “depoentes”.

A questão das diligências fiscais, ou “investigações” como gostam de usar os agentes do Fisco, está regulada no Código Tributário Nacional, cujo artigo 196 é bem claro:

“Art. 196 – A autoridade administrativa que proceder ou presidir a quaisquer diligências de fiscalização lavrará os termos necessários para que se documente o início do procedimento, na forma da legislação aplicável, que fixará prazo máximo para a conclusão daquelas.

Parágrafo Único – Os termos a que se refere este artigo serão lavrados, sempre que possível, em um dos livros fiscais exibidos; quando lavrados em separado deles se entregará, à pessoa sujeita à fiscalização, cópia autenticada pela autoridade a que se refere este artigo.”

Tal norma decorre do inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal, que a todos assegura a ampla defesa e o contraditório. Uma “investigação” de natureza tributária, onde o contribuinte não seja previamente notificado de seu início, prejudica a ampla defesa e inviabiliza o contraditório, na medida em que não existe a possibilidade de contraditar as provas, em demonstrar a legitimidade dos procedimentos que estejam sob suspeita.

Para que haja autuação por subfaturamento é necessária uma prova clara, evidente, de que o preço atribuido na importação é inferior de fato ao preço da mercadoria no mercado naquele momento, bem como prova de que tenha havido de alguma forma pagamento da suposta diferença. O simples fato de que em certo local a mercadoria foi anunciada por um preço qualquer não prova que esse preço seja o correto. A mesma mercadoria pode ter varios preços em varios mercados, por inumeras questões. O fisco deve provar a fraude, não cabendo ao contribuinte qualquer obrigação de provar que o preço por ele usado seja verdadeiro. Cabe só ao fisco provar de forma absoluta que o preço não é verdadeiro. Fraude não se presume e a prova cabe a quem alega.

Hugo de Brito Machado em sua obra Mandado de Segurança em Matéria Tributária (Ed. Dialética, São Paulo, 2003) na página 272 dá-nos preciosa lição:

“O desconhecimento da teoria da prova, ou a ideologia autoritária, tem levado alguns a afirmarem que no processo administrativo fiscal o ônus da prova é do contribuinte. Isso não é, nem poderia ser correto em um estado de Direito democrático. O ônus da prova no processo administrativo fiscal é regulado pelos princípios fundamentais da teoria da prova, expressos, aliás, pelo Código de Processo Civil, cujas normas são aplicáveis ao processo administrativo fiscal. No processo administrativo fiscal para apuração e exigência do crédito tributário, ou procedimento administrativo de lançamento tributário, autor é o Fisco. A ele, portanto, incumbe o ônus de provar a ocorrência do fato gerador.”

Por outro lado, o lançamento deve ser liquido e certo. Não pode ser algo vago. Não pode se basear em informações duvidosas. Não tem sentido o fisco dizer que o preço real de uma mercadoria é um determinado valor porque colheu essa informação num site da internet. Tal informação não tem qualquer valor probante. Como é público e notório, a internet é um espaço recheado de informações falsas, duvidosas ou fantasiosas.

Auto de infração só pode se basear em prova irrefutável e o contribuinte não é obrigado a produzir prova contra si mesmo e nem a fazer prova negativa. Assim, decidiu o STJ:

“Tributário – Lançamento Fiscal – Requisitos do Auto de Infração e Ônus das Prova – O lançamento fiscal, espécie de ato administrativo, goza de presunção de legitimidade; essa circunstância, todavia, não dispensa a Fazenda Pública de demonstrar, no correspondente auto de infração, a metodologia seguida para o arbitramento do imposto – exigência que nada tem a ver com a inversão no ônus da prova, resultado da natureza do lançamento fiscal, que deve ser motivado.” (Acórdão Unânime da 2ª. Turma do STJ, Relator Min. Ari Pargendler – Rec. Especial 48.516, in DJU de 13/10/1997, página 51.553)

Isso demonstra que as tais investigações que o Fisco estaria realizando em relação a empresas acusadas de subfaturamento devem seguir normas legais específicas, sob pena de não terem nenhum valor.

Além disso, a empresa que possui contabilidade em ordem, amparada em documentação formalmente válida, tem a seu favor a presunção de legitimidade da escrituração, presunção essa que não se pode afastar com meras diligências administrativas unilateralmente produzidas.

A jurisprudência tem decidido que “os esclarecimentos prestados pelo contribuinte só poderão ser impugnados pelos lançadores com prova clara ou indício veemente de falsidade ou inexatidão”. (TRF-5ª T., AC 52828-SP , em 5/10/81, DJU 12/11/81)

O Primeiro Conselho de Contribuintes, órgão de segunda instância do Ministério da Fazenda, pela sua 2ª Câmara, em 6/5/81, no acórdão 102-18219 (DOUde 24/8/81) decidiu da mesma forma:

“PRESTAÇÃO DE ESCLARECIMENTOS – Os esclarecimentos prestados só poderão ser impugnados pelos lançadores com elemento seguro de prova ou indício veemente de falsidade ou inexatidão (decreto-lei n.5844/43, art. 79, parágrafo 1º).

Conclusão: qualquer empresa que esteja sendo acusada de “subfaturamento” nas suas importações deverá lançar mão de todos os mecanismos de defesa de que disponha, não podendo aceitar lançamentos baseados em meras suposições, indícios ou presunções.

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